Nos bastidores da Rio Creative Conference, situada na Cidade das Artes, no Rio de Janeiro, a curadora Cristina Barreto abre a porta da sua sala para receber a Philos – Revista de Literatura da União Latina. “Entra”, ela diz. “Estou correndo para uma coletiva em instantes – preciso responder algumas mensagens também. Mas entra”.

Consegui uma brecha de rápidos minutos na agenda apertada de Cristina para entender a junção de múltiplas artes na maior feira de inovação da América Latina e as pertinências do projeto. “O nosso foco era abraçar os setores dentro do audiovisual. Trouxemos os grandes players do mercado, a ficção, falamos sobre o futuro da TV aberta e sobre o mercado independente. Queríamos representar todas as áreas, incluindo os documentários que se fazem aqui e no mundo”.

O telefone continua recebendo mensagens, alguém bate à porta e avisa que ela precisa descer. Um dos painéis começaria em poucos minutos e ela precisava dar uma outra entrevista. “Nos falamos mais. Aproveita o festival, Pernambuco veio com muito peso!”.

Me despeço e peço para a assessoria me informar dos programas; havia chegado de Recife naquela manhã e participado de uma das rodadas de debate sobre literatura. Foram mais de 30 artistas em 14 horas de programação musical. A Rio2C trouxe, pela primeira vez, os maiores festivais independentes do Brasil. Em conversa com o curador Zé Ricardo, no fim da tarde do mesmo dia, ele exclamou: “O festivália não é para mostrar o que temos de moda, o que poderá ser tendência. É para mostrar para a América Latina o que é realidade no nosso país, que é possível fazer bons e grandes eventos de músicas e vocês do Nordeste fazem bem isso”.

Sobre a fala do Zé Ricardo, complemento que estive de olhos muito atentos em todos os segundos que antecederam e sucederam a apresentação dos artistas pernambucanos no Festivália. Com o apoio da Secretaria de Cultura do Estado de Pernambuco – Seculte/PE e da Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco, a Fundarpe; o Festival de Inverno de Garanhuns – FIG mostrou a força e potencialidades da nossa cultura na voz de grandes novos artistas.

Era fim de uma tarde calorosa na Barra da Tijuca, centenas de pessoas se juntavam para assistir a estreia do FIG no palco da Rio2C; acompanhei tudo ao lado de Mery Lemos – uma das produtoras do evento -, o show das cantoras Aninha Martins, Isaar, Isadora Melo, Flaira Ferro; dos cantores Romero Ferro, Almério, Martins, Juliano Holanda, Amaro Freitas, Rogê Victor, Rafa B e Philipe Moreira Sales. O calor do Rio só serviu para esquentar a atmosfera dos pernambucanos e aguçar o desejo dos espectadores pela nossa musicalidade.

Alguns destaques incluem a performance de “Coisa mais bonita”, nova música de Flaira Ferro, cantada com projeções espetaculares e acompanhada de Aninha Martins, Isaar e Isadora Melo. Os novos arranjos para músicas já consagradas da nossa cultura, homenagens para Alceu Valença e Reginaldo Rossi, o coco pernambucano de Lia de Itamaracá. Mas o ápice do show vem na penúltima música, na versão jovial de “Pense N’eu” de Luiz Gonzaga seguido de uma homenagem para Marielle Franco e gritos pela democracia.

A Nova Cena Pernambucana pelas lentes de Rogerio Resende.

Nos bastidores, enquanto os meninos comemoram o final apoteótico do show, sou convidado pela produtora cultural pernambucana Mery Lemos para conversar com o idealizador do show, o artista de múltiplas faces, Juliano Holanda. “Foi um processo feito em parceria com André Brasileiro, que fez a direção artística. Primeiro elencamos uma série de artistas que haviam passado pelas edições mais recentes do FIG e que vieram ao longo do ano fazendo parcerias e trabalhos em Recife”, contou Juliano.

Mery me fala sobre os detalhes das reuniões de planejamento para levar a Nova Cena Pernambucana para a Rio2C. “O FIG iria trazer uma atração que já havia tocado em outras edições e Márcia Souto, presidenta da Fundarpe, teve a ideia de fazer um espetáculo com essa nova cena, uma vez que ela percebeu que era um movimento que já estávamos articulando no estado. O André Brasileiro convidou o Juliano Holanda para dirigir, porque já havia sido um sucesso o espetáculo do Belchior que ele fez na abertura do FIG passado e eles nos chamaram para uma reunião. Foi engraçado, pois, na reunião, até o próprio Juliano sugeriu que fizéssemos um show com um artista maior. E Marcinha [Márcia Souto] disse: – “Não, porque se a gente colocar um artista maior, ele vai tomar a mídia do espetáculo”. E isso foi lindo, ficamos mesmo emocionados, porque é nisso que acreditamos. Nós não queremos ser “fulano e outros” para sempre. Nós queremos que todos os outros estejam presentes e contemplados, seus nomes, seus rostos. E foi assim que fizemos”.

Para a produção, Juliano Holanda organizou, com André Brasileiro, a banda e o repertório em termos de corpo; os artistas também foram indicados pela Fundarpe, “dentro de uma lógica das coisas e projetos que já havíamos feito”, ressalta Mery Lemos. “Pois essa é uma galera que está atuando, e muito, dentro do estado. Todos eles estão fazendo coisas incríveis em seus segmentos”. E é verdade. Cobrimos a apresentação de alguns desses nomes durante o Carnaval de Recife, no Marco Zero. “A gente se sente representando muitos outros. Infelizmente é um espetáculo restrito que não permite trazer todos, poderíamos colocar 60 artistas muito fácil, pois temos muita qualidade”, ressalta.

Interrompo para dizer que todos deveriam sentir-se muito bem representados, e Mery completa: “Sim, espero que sim, de coração. Nós fizemos um trabalho com essa energia para dizer que a gente existe, que a gente resiste fazendo coisas no meio de tantas questões políticas atuais, estamos dando nossos pulos!” (risos).

Lia de Itamaracá, Reginaldo Rossi, Alceu Valença e Gonzagão foram homenageados.

O show, que começou com músicas do repertório de Holanda, apresentou “Altas madrugadas”, “De leve”, “Coisa mais bonita”, “Queria ter pra te dar”, de Almério; “O medo em movimento”, de Romero Ferro (que já publicou conosco), “Braseiro”, “Trupé”, “Faz ideia” e “Me dê”. Dentre as músicas que foram apresentadas ao grande público, coube “Desterro”, de Reginaldo Rossi, “Preta Cirandeira”, de Lia de Itamaracá e “Sol e Chuva”, de Alceu Valença, que fechou o show.

Flaira Ferro, Aninha Martins, Isaar e Isadora Melo pelas lentes de Rogerio Resende.

Sobre o processo criativo, Juliano Holanda nos conta acerca da montagem: “Depois de escolher, começamos a pensar nas conexões que foram feitas e eu vi que podíamos aproveitar e muito isso, essa foi a espinha dorsal do show. Nós sabíamos que iríamos ter um número de piano com Flaira [Ferro]; queríamos homenagear alguns artistas e a partir daí nós montamos muitas conexões”.

Sobre os ensaios, que ocorreram sob olhares atentos, Holanda ressalta: “Foi muito bom todo o processo, principalmente porque eles [os artistas] estavam todos muito irmanados, muito próximos uns dos outros”. Interrompo dizendo que desde o Carnaval de Recife – onde a maior parte deles se apresentou no palco principal-, já era evidente essa sintonia. “O Reverbo e A Dita Curva estavam representados ali de alguma maneira. Então construímos esse roteiro a partir disso, criamos um repertório com pessoas que tinham um entrosamento. A Isadora já cantou músicas minhas, Almério gravou música de Martins. Então trouxemos essas coisas que já existiam. O número de Amaro com Flaira é novo, apesar de eles já terem feito juntos outra música. Partíamos dessas conexões. Foi prazeroso, tranquilo, não haviam questões de ego, eles são todos muito unidos”, finalizou Juliano.

Chamo para a conversa o cantor Romero Ferro, que colaborou com nosso editorial no ano passado. Romero teve o seu mais recente disco, Arsênico, indicado ao Grande Prêmio da Música Brasileira e viu, ao longo do último ano, o seu projeto “Frevália” tomar grandes proporções. Na Rio2C, o cantor também apresentou um pocket-show do disco: “Eu nem sei mensurar o poder dessa semana. Quinta-feira foi o show do Arsênico que foi incrível. Eu faço aniversário amanhã, dia 8, estou lavando a alma. O show de quinta-feira e o show de hoje foi feito com todo mundo querendo levar uma mensagem. Foram oito artistas que representaram milhares de artistas pernambucanos. Nós temos uma cena riquíssima no instrumental, no pop, no rock, no experimental, no indie, no jazz, em tudo. E nós tentamos fazer um recorte de tudo isso e mostrar um pouco e de uma forma muito humilde, uma mensagem sobre a nossa arte. E isso é muito marcante para mim, e espero que tenha sido marcante para as pessoas que assistiram. Nesse momento em que vivemos, com tantos tormentos em nosso país, quando eu me pergunto: – O que estou fazendo aqui? E venho e faço um show desses na companhia de meninos e meninas maravilhosos, cada um com um talento incrível, representando Pernambuco, a minha cidade Garanhuns, e daí eu penso: – É isso que eu estou fazendo aqui!”.

Frevália e Arsênico.

Para Romero, o FIG no Festivália da Rio2C foi um trabalho colaborativo: “Todo mundo tem o seu caminho, a sua carreira. Esse show veio para mostrar que somos artistas muito diferentes, mas que conseguimos dialogar; todos nós nos abrimos e mergulhamos para conhecer a obra uns dos outros, sem nenhum tipo de preconceito. É isso que queremos construir com esse projeto, levar uma mensagem de reflexão sobre tudo o que está sendo dito, sendo vivido. Venho de um ano muito incrível. 2017 foi o melhor ano da minha vida, tive indicações ao Prêmio [da Música Brasileira], o disco se consagrando e o Frevália também. Estou muito feliz!”.

Almério pelas lentes de Rogerio Resende.

Ainda sobre a construção de um show regional no maior evento de inovação da América Latina, Mery Lemos pondera as dificuldades para se estabelecer um projeto com tamanha importância e outros nomes contemporâneos: “Se no Brasil quase ninguém conhece a gente que é de Recife, a galera do interior de Pernambuco é que quase ninguém conhece mesmo. Então nós trazemos artistas como a Agda Moura, de Santa Cruz [do Capibaribe], Alexandre Revoredo, Almério, Isabela Morais e Gabi da Pele Preta que são de Caruaru. Toda uma galera do interior que tomou um corpo, uma força… Antes nós já havíamos lotado o Teatro de Santa Isabel [são quase 600 lugares] e conseguimos pagar todo mundo, quase sem apoio, e isso é bem difícil de ser feito em Recife”.

Mery Lemos continua: “Quando nós fizemos o Reverbo, eu que faço a produção, pensei: – Vou tomar um fumo. Mas que nada! Vendemos tudo! Ficaram pessoas do lado de fora. Em Caruaru também. É a prova prática de que a união é a história do momento. Não dá para seguir sozinho. Tudo é coletivo, o processo é horizontal, todos juntos e pensando como que vai ser. Um entende mais de cena, o outro entende mais de música, de escolher repertório, e isso é muito bonito. É muito verdadeiro. Todas essas pessoas desse palco frequentam a nossa casa. A gente faz vários saraus de voz, violão e poesia. A gente já recebeu a Selmar, que veio para cá [no caso para Recife] e fizemos um sarau.”

Para finalizar, Mery ressalta: “A galera está entendendo que existe um movimento, uma riqueza e está começando a procurá-la. E isso é massa por que é muito cansativo estar o tempo todo se mostrando ou tentando sozinho. É aquela breguice de dizer: -Não procure borboletas, cuide do seu jardim…, mas é isso! Cuide! Vamos plantar juntos, se florescer as pessoas vão ver e vão chegar”.

Pouco depois, os meninos todos se reúnem para uma fotografia oficial, fico no fundo com uma caneta na mão fazendo algumas anotações sobre o que aquele momento se parece e tentando dar um título para a matéria. Escrevo “Meu país Pernambuco”. E pareço muito satisfeito com esse retrato, deveria mesmo estar, já que, como pernambucanos, a Philos e eu nos sentimos muito bem representados por aquelas novas e grandiosas vozes.


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Publicado por:Philos

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